O filme “Que horas ela
volta?” de Anna Muylaert traz a tona a discussão de como a ascensão social
em nosso país é considerada ainda uma anomalia. O filme mostra uma família de
classe média onde as relações internas estão bem delineadas, além de mostrar
que a ascensão das mulheres após saírem de casa, dependeu também de que outras
mulheres, que em busca da mesma liberdade trocaram seu “lugar” em troca do
trabalho e uma melhora de vida.
No filme a empregada
doméstica, VAL (interpretada por REGINA CASÉ) que migrou de Pernambuco para São
Paulo(como tantos outros nordestinos) é
empregada doméstica da residência onde moram uma família de classe média
composta por um pai que não sabe ainda que perdeu o poder da família
patriarcal, uma mãe que é uma das facetas da mulher emancipada e que trabalha e
conduz a família e um filho mimado que tem todas as suas vontades feitas pelos
pais.
Parece uma descrição simples
de uma família, mas não é. A personagem VAL é colocada o tempo todo contra o
que acredita como verdade. E não estamos falando de uma “posição social” o que
fica claro em seu comportamento, mas algo já consciente em nossas relações
sociais onde cada um sabe onde ocupa seu espaço, claramente, uma herança das
relações escravagistas e que perduram no inconsciente do brasileiro.Assim, VAL o tempo todo
percorre o filme em seu “quadrado”: cozinha, quartinho de fundos, área externa
e “naturalmente” é expurgada de outros cômodos da casa, ficando às claras como
são as relações de força, e, como se desloca em sua “senzala particular”. De
uma forma onde se acostumou ou foi “enquadrinhada” em “seu” espaço de forma que
seu corpo amolda-se completamente às suas funções na casa.
Da mesma forma que Val
demonstra que a sua ascensão social se deve ao seu amoldamento às sua funções
na casa, a sua patroa, BARBARA, interpretada por Karine Teles, deixa claro que
as mulheres com sua emancipação viraram o jogo dentro das regras antes
patriarcais deixando claro que assumiram a direção tanto financeira quanto de
chefia de famílias (mesmo que o seu marido, CARLOS, interpretado por Lourenço
Mutarelli ache que quem “manda” ainda seja ele).
Mas a questão não se coloca
na luta feminista e nem sobre a emancipação da mulher o filme deixa claro o
abismo existente nas relações sociais brasileiras e como elas ainda estão
imbricadas das relações anteriores da CASA GRANDE X SENZALA. Assim, VAL deixa
claro em determinado momento que ninguém ensinou a ela o seu “lugar”, como ela
mesma afirma: “a gente já nasce sabendo”.
Se o comportamento do
brasileiro sempre se diferenciou da “casa” para a “rua”, a casa sempre foi um
local onde o poder emanava de uma hierarquia que já vinha datada. Val sabe
muito bem por onde deve se deslocar da mesma forma, o que comer. E sabe que não
deve comer o que os seus patrões comem e que quando lhe oferecem algo é por
“educação”, e que ela deve dizer não.
O filme soa atemporal. Sua
atemporalidade está na questão da emigração Nordeste – São Paulo, bem como na
cinemática dos corpos dentro da casa. São dois itens que o coloca em qualquer
época depois dos anos 90 do século XX, ou até antes.
As relações já delineadas e
postas são questionadas com a chegada de JÉSSICA, filha de VAL que vai para São
Paulo tentar o vestibular de Arquitetura. Assim, o que antes soava como
impossível, uma nordestina pobre pensar em ser arquiteta, vira um
possibilidade, ínfima para a família burguesa que vê com assombro o
comportamento da filha da empregada e desdenha de seu sonhos que se confrontam
diretamente com o comportamento de FABINHO que, diferente de JÉSSICA, terá
muitos mais chances de ascender socialmente.
O vestibular é o liame ou a
encruzilhada onde JÉSSICA se envolve para buscar uma vida melhor. É claro que
há outras forma de empoderamento e ascensão das classes proletárias, mas o
filme mostra que o conhecimento, ou acesso ao conhecimento, pode emancipar
parte da juventude pobre. Mas não é só através do vestibular, mas este não é um
caso de discussão neste texto.
JÉSSICA diferente de VAL
desconhece as regras da casa, não se comporta como empregada, apesar de ser
“filha de”, não reconhece a diferença do “sorvete da empregada” para o “sorvete
dos patrões”, não se reconhece na mãe e soa para a família burguesa arrogante e
grosseira. Mas como ser diferente? O seu corpo não foi docilizado como o da sua
mãe, e, diante do que havia aprendido em sua escola e inspirada por um
professor de história acredita que tem possibilidade de “disputar” o mesmo
espaço com os filhos da burguesia.
O melhor do filme é essa
construção de como os corpos ocupam determinados espaços e ficam claro que a
ascensão social em nosso país mudou após a abertura política, fim da inflação e
que muitas conquistas têm seus dois lados (no caso a luta feminista) ou fazem
parte da mesma página, no fim é um chute no estômago e na hipocrisia brasileira
que teima em dizer que “a empregada faz parte da família”. Não, não faz.
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