O ENIGMA DE BRIZOLA
Transições são momentos emblemáticos por que trazem em si uma
simbologia que às vezes pode significar uma mudança brusca e uma falta de
continuidade em um movimento da sociedade e outras vezes não é marcada como uma
ruptura, mas sim ao contrário. A sociedade muda, mas normalmente essa mudança
passa despercebida, ou às vezes, esquece-se o movimento da mudança, seus
vetores e suas consequências, colocando na conta do presente fatos e pessoas
que muitas vezes não são as verdadeiras responsáveis nem pela mudança, nem pela
falta de continuidade ou pior colocando-as como as verdadeiras culpadas das
mazelas e dos acontecimentos que não desaguaram em uma solução para determinado
problema social.
A segurança pública no Rio de Janeiro encontra-se neste patamar,
há uma análise difusa, sem consenso, inacessível e muitas vezes o senso comum
prevalece, esquecendo-se as pesquisas e o que a academia tem produzido sobre a
violência urbana naquela cidade.
Um dos pontos controversos é exatamente na mudança ou na ruptura
ocorrida quando se anunciava a morte do governo militar e a sociedade civil
iniciava o movimento para tomar as rédeas do Estado. Foi no primeiro governo
Leonel Brizola (1983-1987) que se iniciou uma diferenciação entre a política de
segurança do regime ditatorial e do Estado em transição.
A transição democrática exigia dentro dos limites constitucionais
um novo modelo de política de segurança para o país e uma adequação das
instituições policiais ao novo modelo de Estado. Foi no governo Brizola que se
iniciou o processo de mudança onde a questão social deixaria de ser “caso de
polícia” para ser “caso de política”. Neste contexto foi através do “Plano de
Desenvolvimento Econômico e Social do Rio de Janeiro período de 1984-1987” onde
podemos analisar os avanços ocorridos na segurança pública no Rio de Janeiro a
partir do Governo Brizola. O documento informava que a mudança de conduta do
governo em relação à comunidade iniciava-se com o respeito aos direitos humanos
em todos os níveis e principalmente quanto ao respeito à segurança do cidadão
comum.
Essa preocupação inicial de inserir no contexto histórico da época
a defesa dos direitos humanos custou caro à Brizola, aqui o senso comum
prevaleceu, em parte, pois considerou o seu governo o estopim inicial da
violência urbana no Rio de Janeiro. O Governo Brizola inovou em relação à visão
de segurança pública dos militares e avançava ao colocar como primordial a
proteção à pessoa e não ao Estado. Segurança pública passou a ser pensada em
relação à proteção da cidadania e não ao Estado. O documento ainda previa o fim
da impunidade e da arbitrariedade, o que levaria a um Estado menos autoritário,
ou seja, o governo apontava para o restabelecimento da cidadania (ou pelo menos
parte dela). Como exemplo, o documento informava que o cidadão não deveria
temer a polícia, mas sim acioná-la em caso de necessidade, pois ela deveria
protegê-lo e não reprimi-lo.
O cidadão fluminense das periferias da cidade acostumado na
Ditadura Militar ao “pé na porta” e as prisões ilegais que iam contra as suas
garantias individuais garantidas na Constituição Federal não entendeu o vento
das mudanças e do outro lado alguns setores da sociedade fluminense ou da
“cidade européia”(NEDER, 1995) viram-se ameaçados pela “sociedade quilombola”
alastrando-se a ideia de que até o desbaratamento dos “esquadrões da morte” no
Rio de Janeiro levavam a um enfraquecimento das polícias e tendo como
consequência o aumento da violência e da criminalidade.
A “sociedade europeia” (as classes média e alta) queria uma
polícia arbitrária, repressiva e truculenta para a “sociedade quilombola”
(moradores das favelas e das periferias), mas não a queriam para o seu
dia-a-dia. Parte do que assistimos hoje nas periferias das grandes cidades
iniciou-se em parte com o mesmo processo ocorrido no Rio de Janeiro, onde a
divisão sócio-espacial e geográfica limita não só as pessoas, mas também impõe
uma identidade de exclusão, estigma e criminalização, não somente social, mas
também racial.
Em parte, o governo Brizola apontava para a modernização das
políticas públicas de segurança no Rio de Janeiro, foi o primeiro movimento
para a modernização, as causas de sua derrota são várias (não cabe aqui neste
espaço), mas uma que foi primordial foi a resistência tanto das instituições
policiais quanto da sociedade fluminense, o que vemos hoje no Rio de Janeiro é
parte dessa história.
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